Ouvindo: Ana de Amsterdã
(Chico Buarque)
Era inverno, mas uma folia grandiosa e cheia de suor se instalara dentro dela. A blusa de seda já estava um pouco molhada e a leve transpiração aparecia acima dos lábios.
A noite fria inaugurava a lua redonda e amarela, parada no meio do céu e seus olhos redondos e pretos faziam com que a lua refletisse feito um diamante solitário à beira de uma queda [uma lágrima].
Irene não era mulher de sentir frio, gostava do arrepio e do leve tremor. Apreciava andar pelas ruas, olhando de soslaio para os lados, procurando alguma coisa, farejando sempre um algo ou alguém. Mas sempre o fazia de maneira discreta para evitar o falatório das vizinhas tagarelas. Mas naquela noite, ela pouco se importou. Sentia uma urgência de sair, naquela madrugada que quase lamentava o seu nome.
No entanto, foi só pisar na calçada e começar a caminhar para que os olhares se voltassem para ela, tão pouco casta, tão pouco puta. Mas gostava. Mordeu os lábios num meio sorriso e continuou andando.
Também não ajudava o fato da saia ser rodada e leve. As flores cor de lilás estampadas no verde do capim, estavam loucas para pular feito confetes e serpentinas pelo céu. Então, bastava Irene se virar para olhar novamente uma vitrine para que a saia subisse e revelasse – quase, não muito, muito pouco – um pedaço de si. E só esse vislumbre bastava para que o homem na volta de seu nobre trabalho enlouquecesse e perdesse seu rumo tão certo, tão distinto.
E ela gostava de distinção. Tinha de ser reto [ereto], direto, sério e robusto. Gostava de loção pós-barba, cabelo alinhado, terno bem cortado. Perseguia olhares que não a devorassem, mas que a desnudassem aos poucos, como quem despedaça uma flor enquanto lê um poema. Mas acima de todas essas coisas, prezava mais do que tudo a mão forte e decidida. Grande o suficiente para dar a volta em sua cintura. Grande o bastante para não permitir sua fuga sempre certa.
Alguém no mundo teria de ser capaz de prendê-la, de amordaçá-la por vontade própria e assim aprisioná-la de uma vez por todas, sabe-se lá por quanto tempo. O bastante para que ela mantivesse por mais alguns segundos seu olhar no olhar de outro,a busca da lua nos olhos do outro. E ela assim desejava essa mão, a força carinhosa, o cheiro de vontade e o silêncio que gritava seu nome na respiração acelerada.
Mais uma noite de sexta feira. Uma noite de lua grande, sem estrela e sem vento.
A noite onde os cães ladravam sua fome e os gatos minguavam sua solidão.
A noite de sonhos sem lembrança e de memórias pela metade.
É noite de Irene.