quinta-feira, 14 de junho de 2007

..inferno..

Lu Minami

Ouvindo: Santa Maria
(Gotan Project)


"Vá para o inferno", ele disse alto com as mãos que tremiam apontando para um lugar distante, os olhos ardidos e a baba rasa que escorria sem perceber pelo cantinho da boca.

Tinha começado assim o sonho. E bem que ela queria que fosse verdade quando acordou e viu que ele ainda permanecia ali, ao seu lado. Para o inferno? Era possível enviá-la para lá novamente se já residia nele, com jardim e tranca na porta?

Vivia o inferno dos dias pela metade. Não sorria direito, tinha dificuldade em andar, mal respirava. O que ela queria era economizar aquele tempo para estar perto dele, juntava pequenos goles de ar que o rodeavam para haver partes de oxigênio compartilhadas, andava diminuta para observar melhor os passos dele e sorria só para ele; o resto para si mesma e ninguém via.

Ela observava o mar de cilios pretos que batiam asas em seus olhos cheios de falsas ternuras. Ela acreditava na mentira do brilho, amava, gozava, aceitava, entendia. E por saber de cor todas as pintinhas que formavam o firmamento das costas largas e das bochechas pouco pálidas, perdia a hora do sono lembrando de cada uma delas, por onde sua língua já havia pousado e dançado diversas vezes. Sentia o pescoço pulsar, o sangue corria rápido demais quando ele chegava perto dela. A ponta do nariz gelado, por debaixo dos seus cabelos que ela tanto escovou; as mãos ao redor da cintura de maneira indelicada e sem carinho, enquanto a fitava de um jeito obsceno. Ela derramava uma lágrima cada vez que ele fazia isso. Mas sorria quando ele caia por cima dela finalmente, sorria por poder aninhá-lo em seus braços e sentir que ele precisava e gostava disso.

Vivia o inferno da dor e da humilhação. O inferno de amar acelerada e desenfreadamente. O inferno de não poder pensar nem querer. De mergulhar sem guardar no peito o ar da volta. De saber que vai morrer, de garrafa e copos vazios; de camas e travesseiros gelados; de caminhadas sem mãos para acompanhá-la.
Tanta razão boa de morrer e fora escolher justamente essa, injusta.

Talvez fosse melhor viver feliz no inferno. Enquanto ele levantava e deixava o dinheiro em cima do criado-mudo, ela pensava em seus jardins e portas abertas.

Que seja no inferno então.

Um comentário:

Unknown disse...

"mergulhar sem guardar no peito o ar da volta."


muito amei

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