Ela era uma escultora. Esculpia os sonhos ao seu redor para que tomassem forma enquanto cantava. Fazia daquilo a sua realidade, fazia o real se tornar uma esquete de amor próprio e de amor pela cidade. Ela era escritora. Ensaiava seus diálogos quase sempre definitivos, quase sempre inacabados. Ela parecia quase nunca ter razão nessas discussões, mas sempre terminava em um longo abraço como quem se despede para sempre. Ela era compositora. Buscava ritmos no seu andar, no seu amar e no seu sorrir. Ela era poeta. Andava descalça nas folhas caídas da calçada, trovava a dor de amar, a solidão de pagar contas e dirigir sozinha na madrugada. Ela era autista. Fechava o mundo fora do corpo e olhava para dentro de seus buracos, seus ocos, seus vazios... cantava baixinho e recitava poemas em silêncio com o olhar perdido. Ela era florista. Pintava as flores de vermelho e as entregava para qualquer coração pálido, colhia mudas nas entrelinhas de cada conversa pela metade e jurava regá-las até o fim. Ela era curandeira. Olhava a palma das mãos e tocava as pessoas com o real desejo de curar a si mesma. Ela era costureira. Sabia coser como ninguém seus remendos para enfiá-los num bolso furado e cobrir-se com um capuz puído. Ela era puta. Exibia seu corpo como quem leiloa um pedaço de carne meio fresco, meio passado. Ela cobrava o que oferecia em moedas de olhares e sorrisos. Ela era louca. Gritava, descabelava como ventania e ardia eternamente, sem tocar os pés no chão, sem tirar os olhos do céu e da chuva.
Ela era o amor.
Cheia de tudo e nada.
Transbordada de coragem e esperança.