É dela que me lembro.
O mundo inteiro envolto numa nuvem semi-opaca de brilho e as cores morrendo devagar e é dela que me lembro, em vívidas cores. Da bolsa que não combinava com as pantalonas. O sutiã que tinha alças encardidas e que ficava aparecendo nas alças da blusa preta. Um coque mal feito que deixava cair mechas de cabelo sobre a boca que não parava um segundo de falar, junto com as mãos que desenhavam o seu corpo enquanto discursava sobre verdades, videotape, Modigliani, Elvis e Vinícius.
Ela, que transformava o conhaque em adereço permanente, no copo e no cheiro do seu pescoço. Ela, que tinha o infinito no corpo e que para muitos, lembrava o trevo da sorte. Ou o gato que atravessava caminhos, trancava estradas e artérias. Nela, significava infortúnio, algum perigo e prazer. Distante e perto demais... dela. Profundo e na superfície... dela. Frio na espinha e calor... nas pernas dela.
Falando assim, parece ridiculamente fácil lidar com isso. E é. Minha vida se tornou um poço de líquidos e fatos lembrados pela metade, porque eu não conseguia permanecer acordado e alerta, enquanto tentava tirar isso de mim. E isso, por algum tempo, funcionou. E muito. Cheguei a ficar perto do dia em que não ia acordar de pau duro e olhos molhados porque sonhava com ela. Foi quase, mas na primeira luz que senti doer os olhos, ela apareceu, sentou-se ao meu lado e falou, falou, falou, desfiou a lã do cobertor, espreguiçou-se de costas para mim, esfregou os pés e botou o dedo indicador no queixo, para pensar antes de continuar disparando a sua metralhadora de idéias, mágoas, romances, feriados, planos, parquinhos, cachorros, Deus e Diabo, os outros, sertão do mar e o mar do sertão.
Mas fui atrás e tentei, seriamente, arranca-la e joga-la fora. Tentei odiar muito e diariamente para fazer nascer uma fúria de estimação, ficar amargo. Tentei outras e tentei a mesma. Comecei a dar voltas pelo bairro na madrugada para deixar o vento entrar sorrateiro debaixo da camisa e fazer sumir aquilo tudo... dela. Andava rápido e pesado para fazer doer bolhas no pé e esquecer da dor permanente dela e uma vontade permanente de curá-la, mesmo sabendo que o enfermo sou eu, sempre fui eu.
Tenho dores. Parece doer absolutamente tudo na falta despretensiosa e solta dela. A ausência da voz meio embargada, cansada, exausta de tanto fugir pelos cantos de si mesma, citando frases inventadas para mim, naqueles minutos que não preenchiam uma hora sequer e que, para ela, nada diziam.
"Você me lembra o carnaval"
"Você parece uma brisa de meia dúzia de anos atrás num janeiro de faz tempo"
"Qualquer jeito que me olha, dá vontade de esquecer"
Desgraça, Pagu, louca, demente, indecente, vadia, escandalosa, demônio.
Puta.
As caminhadas não me adiantam nada, só me fazem pensar em como teria sido, se eu tivesse aberto aquela porta quando ela me chamou para fugir e só. Como sempre, tão louca e urgente. Enquanto eu, tão sentado em cima de mim mesmo, culpava você pela loucura.
Hoje, decidi que quem precisa fugir sou eu. Para longe, olhar a história e a tragédia de homens de séculos atrás e me emocionar com o muito-mais que sentiam por seres muito melhores que a bendita maldita.
Reflexos meus me seguem pela rua, em carros que furam o semáforo, em vitrines vazias e em portas engorduradas que se fecham, expulsando o último romântico do quarteirão. Me seguem em obediência calada, olhando para seus sapatos, pensando em bolhas, de outras ruas com outros rostos que não se transformassem em você, rindo e chorando ao mesmo tempo, apontando coisas secretas e sujas no meio do almoço, acendendo o cigarro amassado e linda, errada, errante, errônea, grande erro, pior acerto.
Me perdoa?
Não sei ser nada que não lembre você.
Estou indo embora para ter certeza disso. Eu sei que você liga, escreve, corresponde, chora e esperneia, mas às vezes, minha cara, meu amor, não tem jeito.
Daqui do 10o andar, dá para ouvir sua risada enorme e feliz e uma frase, num fio de voz...
No meio da neblina, prefiro ignorar, continuar olhando para o chão e seguir.
10 comentários:
Não quero ser o primeiro a comentar.
Desafinado.
"Você parece uma brisa de meia dúzia de anos atrás num janeiro de faz tempo"
sabe-se lá qto eu daria pra ver de volta esse velho janeiro de chuva quente e tardes na fruteira...
eu realmente não sei ser nada que não me lembre eu...rs
esse post é um Café.Cigarros mais que autentico! eu o incluiria naquela série de "cartas para ninguém"...rs
sensacional, japa!
Lu, vc tbém tá com Bukowski na cabeceira, né? rsrs..
;)
meu irmão, esse texto tá demais, menina! parabéns, parabéns!
Po gente, valeeeeu!
=)
Foi de todo coração, pesar de meloso em alguns momentos. Mas somos todos assim, com algum ou nenhum pesar.
Beijo!
(bukowski rules!)
"Enquanto eu, tão sentado em cima de mim mesmo, culpava você pela loucura."
saudades de vocês!
vim diretamente do blog do xico (carapuceiro)! já me encantei pela trilha, salve j. addiction! e o texto... virei mais vezes!
me lembrei da película caótica ana
vim diretamente do blog do xico (carapuceiro)! já me encantei pela trilha, salve j. addiction! e o texto... virei mais vezes!
me lembrei da película caótica ana
ViVi!
Seja bem vinda ao blog. Se vc lê Xixo Sá, vai gostar de algumas coisas/loucuras que postamos aqui vez em quando!
=)
Vc tem blog? Manda o link!
bjs
Lu Minami
Ler isso e ouvir jane's addiction ao mesmo tempo, sao prazeres que poucas mulheres podem proporcionar às pessoas, sejam estas homens ou mulheres.
Lu, desejo um cortejo na sua direçao, sempre.
Só lamento por esse pobre coitado. nunca se deve perder a oportunidade de seguir loucas urgentes por medinho. Tomara que ele ande mesmo e se ache, porque ficar parado sofrendo por amor desperdiçado é uma das piores tritezas dessa vida.
ps. vc é foda.
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