Estou lendo um livro de Benedetti, chama-se Primavera num Espelho Partido. Fala sobre a ditadura uruguaia e especificamente sobre uma família que tem seu filho exilado. O exílio forçado para longe de casa, o exílio em si mesmo, vivendo de lembranças, com a cautela de não submeter seus dias à elas. O filho, marido e pai então organiza suas memórias de um jeito que não o deixe insano de saudades. Saudades essas do cheiro das ruas de sua cidade, de sua mulher, de ver a filha crescer sem o pai, da barba mal feita do Velho, seu pai. No meio de suas cartas, Benedetti escreve outras cartas como outros personagens, inclusive como ele mesmo e escreve como criança, como mulher, como Velho, como amigo boemio, como outros exilados.
Gosto do jeito como ele escreve sendo Beatriz, a filha de 5 anos. E então me lembrei das redações que fazia na escola, valendo nota, sobre temas específicos e sobre temas aleatórios, como volta às aulas ou algo do tipo.
Percebo que parei de escrever sobre a minha vida mundana e escrevo apenas sobre meus passos inventados, minhas conversas e esperas imaginárias e nada sobre o mundo real onde vivo.
Sentada no café da livraria perto de casa, percebo olhares sobre mim, que me julgam, da maneira mais amistosa possível, penso eu, mas completamente errôneas. Sinto então uma necessidade crua e fisiológica de contar quem sou eu hoje, nesse espaço de meias horas. Como Beatriz escreveria. Como Benedetti me leria.
"Dizem que solidão é viver sozinho. Não é como andar na rua, sem ninguém senão seu guarda-chuva. É não ter companhia, mesmo estando cercado de pessoas que a gente pode gostar ou não. Isso é uma coisa que demorei para entender. E acabei me acostumando a fingir que não estou sozinha quando na verdade, pessoas ficam perto de mim e conversam comigo sobre suas vidas.
É engraçado isso. Quer dizer, como eu ficaria sozinha se alguém conversa comigo e diz meu nome, rela no meu ombro ou anda ao meu lado na calçada?
Mas aqui dentro parece um grande deserto, cheio de livros e de música e então não me sinto mais sozinha.
Pensei na minha Tia Mie. Ela não lê e não vê TV. Também não faz tricô e nem tem amigos. Mas ela cozinha um bolinho de arroz que eu gosto muito. Mas nem sempre tenho vontade de comer esse bolinho. Então quase nunca a vejo. Mas acho ela sozinha. E não fico triste por ela. Afinal, ela poderia ler, não? Ou então fazer passeios para ver o mundo e como ele funciona.
Então não há razão para me ficar triste por ela. Acho pior assim, quando se está sozinho e ninguém vê essa solidão porque tem um monte de gente ao redor sempre e se tem compromissos todos os dias.
Essa solidão deve ser mais triste. E quase irreparável. Irreparável parece uma palavra trágica e é. Afinal de contas, que triste querer consertar, reparar algo e não conseguir. Por exemplo, se você tem um relógio que não funciona e o relojoeiro diz que não tem como fazer o reparo. Bem, você o joga fora, não?
Existe coisa mais triste que um relógio sem serventia, que não corre os minutos e não gira seus ponteiros?
É como alguém sozinho que não funciona mais, que não gira sua vida e esquece de fazer correr o seu tempo."