Lu Minami
Ela caminha em seu apartamento, em passos rápidos enquanto seus saltos fazem o barulho oco no piso de madeira. Cloc, cloc.
Atravessa os cômodos, entra na cozinha, pega um copo d´água e uma maçã pequena, busca o celular que deixou carregando, pega o casaco em cima da cadeira, enrola no pescoço o cachecol que está largado no sofá, pega as chaves, olha para o apartamento desarrumado, nota a samambaia quase morrendo e anota mentalmente que precisa dar água para a planta e alugar um bom filme à noite.
Um pouco desapontada, lamenta ter pego o elevador de serviço, pois este não tem espelho para saber se o seu cabelo está assentado, sem fios rebeldes e descontrolados.
Olha nos reflexos dos carros da garagem, sem parar, no entanto. Não fica tão satisfeita porque os vidros dos carros a engordam. Entra no carro, dá a partida, olha no retrovisor e arruma o lápis do olho, um pouco borrado. Começa o dia com o noticiário, para atualizar as notícias velhas de ontem.
Dá ré, manobra e segue em direção à saída da garagem. Vira à direita e cruza a avenida.
Quase bate num carro. Estava distraída, ouvindo a notícia de um incêndio que aconteceu num bairro próximo durante a madrugada.
Olha para o motorista, quase brava. Ele é bonito, pele bem clara, cabelos pretos, pouco molhados e ondulados, olhos sonolentos e pesados. Deve ter acabado de acordar, pensa ela. Ela continua olhando, pois param um ao lado do outro, apesar do susto. Mãos bonitas, bem cuidadas, assim como a barba. A blusa bege estava encardida e um pouco desfiada, mas combinava com ele. Ele fumava e balançava o cigarro no ritmo da música. Se ela se esforçasse, conseguiria descobrir que música ele estava escutando. Mas o farol abriu e ela imaginou seu nome e seu prato favorito, enquanto o olhava pelo retrovisor.
Ele está atrasado. Muito atrasado. Toma banho correndo, escova os dentes correndo e procura algo para comer. Nada. Na garrafa térmica, o café da semana passada que a diarista que só vinha às quartas-feiras fazia. Tudo bem, ele pensou, enquanto entorna metade de um copo americano goela adentro.
Procura o casaco de naylon que sua mãe dera no Natal. Acaba vestindo uma malha de tricô bege jogada em cima da mesinha do telefone. Este toca, esgoela. E ele não atende. Estava atrasado mesmo, a ponto de seus colegas ligarem para saber se estava vivo, doente ou morto.
Molha a mão na torneira da cozinha, ajeita o cabelo no reflexo do microondas e tira uma remela grudada no olho esquerdo. É melhor lavar o rosto. Na pia da cozinha. Estava atrasado, não dava tempo. Dá uma última olhada para o apartamento antes de fechar a porta atrás de si. Precisa dar um jeito nos pacotes de salgadinhos e amendoins. E recolher as latas também.
Chama o elevador, uma vez somente. A porta abre e a vizinha gostosa que mora 2 andares acima lhe sorri e deseja um bom dia. Sem vergonha dos seus pensamentos ele deseja o mesmo a ela, dá um breve aceno com a cabeça e entra na garagem. Balança o molho de chaves e entra no carro. Liga o carro, liga o rádio. Manobra, precisa de música para acordar.
Sai da garagem e acende um cigarro. Vira à esquerda e cruza a avenida.
Buzina, desvia e quase bate num carro branco. Só pode ser mulher, ele pensa. E é mesmo. Uma mulher de cabelos lisos, com reflexos loiros, num corte repicado que ele não gostava, mas que nela tinha ficado bom. Ele pensa no corpo dela e fica satisfeito, mas ela olhou para ele, que ficou envergonhado. Tinha acabado de acordar, vestido com uma blusa velha, despenteado e com sono.
Dava quase para adivinhar o cheiro dela. Ele pensou que não teria problemas se a chamasse para sair, tomar um vinho, pedir seu telefone.
O farol abriu e ele olhou para a pedestre gostosa que acabava de chegar ao outro lado da rua. Colocou na primeira marcha e deu uma última olhada pelo retrovisor torto.
Maldito manobrista.
Este texto é de estimação. Escrevi em julho do ano passado e foi publicado num site, mas gosto tanto dele que decidi postá-lo hoje. Além do mais, ele me convence que tudo que é casual tem um sabor diferente. Esse gosto meio doce, azedinho no final, amargo na garganta. A gente fica na dúvida se quer provar de novo ou não... Será que provamos sem querer?
Lu - de caso com o acaso
Um comentário:
Lu,
belo texto, vc registrou o mesmo ??
Bjo
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