terça-feira, 31 de janeiro de 2006

Lucy & Jazz



Lu Minami

Ouvindo: You Don´t Know What Love Is, Sonny Rollins

Ele era assim, todo insosso. Não tinha nada de mais. O cabelo era escorrido até o comecinho do pescoço e a franja caía na testa e tampava os olhos. Olhos bem pretos, um pouco caídos e irritados, avermelhados. As costas eram levemente curvadas e ele arrastava os pés, como quem não tinha pressa de chegar a lugar algum.

Eu estava naquela livraria enorme, cheia de seções de livros, eletro-eletrônicos, CDs, DVDs e funcionários quase nunca prestativos, em cima de um carpete que sempre cheirava a novo. Entre jazz e new wave. Pensei: "Jazz, por favor". Ele pegou Sonny Rollins. Respirei fundo, aliviada. Fiquei ao lado dele e escolhi Monk. Só para variar. Ele me olhou pelo canto do olho e pude ver de relance a estampa da camiseta. Tinha bolhas de sabão e sapatilhas de ballet douradas. Pensei imediatamente em Lucy. E lhe dei um meio sorriso sem graça e com pouco açúcar.

Ele percebeu e sorriu também. Eu usava saia e camiseta branca. Alguma coisa nele fez meu coração bater forte e minhas pernas se arrepiarem. Saímos, em direções opostas da seção e eu, desnorteada, fui procurar Julio Cortázar. Encontrei-o novamente, com um livro de fotografia num braço e lendo a orelha de um García Marquez no outro. Desta vez, ele olhou diretamente para o fogo da capa do meu livro. Observei aquelas sobrancelhas grossas e bem desenhadas, levantadas na minha direção. Tênis sujo, a franja caída na cara e Lucy. Pele branca, muito clara e a barba castanha, nem rala, nem cheia, que mal escondia a boca grande e o sorriso maroto.

Devo ter ficado vermelha quando derrubei o livro e o CD e saí da seção de literatura estrangeira. Precisava de um café forte. É incrível como constroem uma livraria, com um café ali dentro, sem área para fumantes. Pedi o café para viagem e entreguei o livro e CD que eu havia escolhido para a moça guardar enquanto fumava um cigarro.

Eu me lembro de ele ter dado passagem para alguém imaginário enquanto soltava a fumaça pelo nariz. Ele olhou sério para mim e, em seguida, para o lugar vago ao seu lado. Obediente, fui até ele e tentei acender meu cigarro. Ele percebeu o leve tremor, porque puxou seu isqueiro, enquanto tirava o cabelo dos olhos.

- Cortázar e Monk.
- Rollins e García Marquez.
- Esqueceu o Eros.
- Não conheço.
- Fotografia de nú.
- Sei.
- Você parece triste. Embora Monk seja sexy.
- Colossus também.
- Sexy ou triste?
- Acho que os dois.
- Bem - disse ele, apagando o cigarro no chão - Vamos agora.

In The Sky. Tive que buscar meu livro e o CD noutro dia, porque a moça da cafeteria da livraria não quis guardá-los e nem eu deixei reserva com nome e telefone. Fui procurá-los novamente, na semana seguinte. E, chegando na seção de jazz, passando por blues e folk, eu o avistei com suas costas inclinadas para frente e os olhos irritados, como quem os esfrega sem parar, espreitando uma garota que procurava Bob Dylan na seção errada. “Esta vai ser fácil”, refleti. Enquanto procurava Theolonius Monk nas prateleiras de jazz, me deparei com Ellington e Fitzgerald. Agarrei, antes que alguém o visse e antes que Lucy me reconhecesse.

Corro para o caixa, pago e saio correndo para a Av. Paulista cheia de buzinas, sol e cheiro de piche.

Quanto clichê.
Quanto jazz.

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